O papel dos operadores do direito na memória dos territórios negros e indígenas

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Os critérios técnicos de defesa judicial devem, sempre que possível, estabelecer vigilância para a não utilização de termos linguísticos que possam ultrajar os territórios e a memória das populações indígena e negra.

 “…apenas um negro em cada 10 mil está interessado no esforço de expor o que sua raça pensou, sentiu, tentou e realizou para que não se torne um fator desprezível no pensamento do mundo…” (Carter G. Woodson, 2021. P. 117).[1]

O bairro da Liberdade na cidade de São Paulo é reconhecido pela cultura nipônica e todas as características e adereços presentes no território comunicam esta referência. Porém, na passagem do período colonial e escravocrata, o bairro possuía uma presença marcante e majoritária de negros e indígenas.

Ao caminhar pelo bairro, a maioria das pessoas desconhece que ali havia um antigo cemitério, o primeiro da capital paulista, e que foi destinado ao sepultamento dos corpos de indigentes e enforcados, cujo apagamento histórico é resultado de um gradativo processo de urbanização e modernização da cidade.

Contudo, ainda há uma marca perene desta história que ainda permanece viva naquele território, relutante a todas as empreitadas do planejamento urbano da cidade de São Paulo, a denominada Capela dos Aflitos[2].

O local que era reservado para o martírio das pessoas que aguardavam a execução na forca acolhe a grande história[3] do cabo Francisco José das Chagas, o Chaguinhas[4], que possui intrínseca relação com a memória da Capela e nomeação do bairro da Liberdade.

Na luta pelo reconhecimento da história e da memória da Capela dos Aflitos, movimentos sociais[5] e religiosos vinham enfrentando há anos insolências estatais e disputas com a própria vizinhança.

Mas, em dezembro de 2018, com a descoberta de ossadas[6] do antigo cemitério em uma área particular, a cerca de 100 metros da Capela dos Aflitos, destinada à construção de um shopping, cresceu a mobilização jurídica e política para proteção do patrimônio histórico e pela construção de um Memorial dos Aflitos.

A Carta Magna brasileira de 1988, firma um compromisso com a história e a memória do povo brasileiro, estabelecendo ferramentas constitucionais, tais como:

O art. 5, LXXIII, oportuniza demanda por ação popular para proteção de patrimônio histórico; o art. 23, III e IV, proteção de documentos históricos o que impede qualquer tentativa de destruição de tais registros; o art. 24, VII e VII, trata da proteção do patrimônio histórico e da responsabilização dos danos ao meio ambiente e histórico; o art. 30, IX,  o município deve promover a proteção do patrimônio histórico de seu território; e no art. 216, V, a consagração da proteção do patrimônio cultural brasileiro.

Vale aqui o destaque para o art. art. 30, IX da Constituição, pois, frente ao deslinde dos acontecimentos, a atenção legislativa municipal operou com o PL 653/2018 para a criação do Memorial dos Aflitos, que adiante foi aprovada pela Lei 17.310, de 28 de janeiro de 2020.

Contudo, havia mais um imbróglio jurídico, relacionado à desapropriação do imóvel onde foram encontradas as ossadas. O Executivo municipal decretou utilidade pública do terreno com o Decreto 59.750 de 2020 e sua desapropriação para implantação do Memorial dos Aflitos. No entanto, o decreto municipal foi contestado judicialmente.

O Estatuto das Cidades, diploma legal brasileiro que instituiu o mecanismo da Transferência do Direito de Construir na seção XI no art. 35, torna crivo o contexto do Memorial do Aflitos na necessidade do poder público municipal de desapropriar o terreno para utilidade pública.

É nesse momento que se faz o exame do tema apresentado em alguns pontos.

O primeiro ponto: antes de contextualizar a situação, é primordial rememorar o que enuncia o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (CED/OAB), em relação à atuação dos profissionais.

No art. 2º, o advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e garantias fundamentais, da cidadania, da moralidade, da Justiça e da paz social, cumprindo-lhe exercer o seu ministério em consonância com a sua elevada função pública e com os valores que lhe são inerentes. X – adotar conduta consentânea com o papel de elemento indispensável à administração da Justiça; já o Art. 6º É defeso ao advogado expor os fatos em Juízo ou na via administrativa falseando deliberadamente a verdade e utilizando de má-fé.

E o art. 28: consideram-se imperativos de uma correta atuação profissional o emprego de linguagem escorreita e polida, bem como a observância da boa técnica jurídica.

A boa prática jurídica exige critérios básicos, como uma conduta exemplar, boa-fé nos fatos e dentro de uma boa escrita.

O segundo ponto trata do objetivo do presente trabalho, que foi analisar o Mandado de Segurança[7] que contestou o Decreto Municipal 59.750 de 2020. Ao deter ao exame dos argumentos utilizado pelo impetrante, verificou-se que os termos utilizados são destoantes ao polido rigor do CED/OAB. Termos esses que não merecem ser transcritos nesta tarefa, pois afrontam a história da comunidade indígena e negra.

É importante destacar que a extração do argumento analisado diz respeito à memória das populações indígena e negra escravizadas que viveram no bairro da Liberdade no período colonial.

Muitas dessas pessoas foram executadas na forca, e permanecem enterradas no Cemitério do Aflitos, local onde está localizada a Capela dos Aflitos. Essas pessoas trabalhavam, construíram e tinham suas atividades naquele território, muito antes da comunidade nipo-brasileira chegar.

Com muito respeito à história da imigração oriental no bairro, que agregou sua cultura e seu trabalho na construção da cidade de São Paulo, a memória daqueles que estavam muito antes – o povo negro e indígena – não pode ser ridicularizada em uma argumentação jurídica.

Daí a importância dos operadores do direito na tutela da memória dos territórios negros e indígenas.

Todos que estão operando o processo, entre advogados, membros do Ministério Público, magistrados e os auxiliares da Justiça devem estar antenados a questões linguísticas que possam ofender grupos e pessoas e, quando ocorridas, certificarem e oficiarem os conselhos de classe dos profissionais.

A Procuradoria do Município, o Ministério Público, através do subprocurador-geral de Justiça e o desembargador relator, rechaçaram firmemente os argumentos expostos pelo impetrante do Mandado de Segurança. Todavia, mesmo causando perplexidade (expressão que foi utilizada pela Procuradoria do Município), não se aventou a notícia[8] à entidade de classe dos profissionais.

Uma reflexão que se coloca ao tema é o racismo linguístico[9]. O racismo está em todas as estruturas de nossa sociedade, e também se apresenta na linguística.

O caso em questão evidencia nos argumentos jurídicos empregados as marcas do racismo linguístico, e acende um alerta aos operadores do direito para que estejam atentos à utilização de termos nos autos que expressem tratamento discriminatório.

E também observem a norma ética vigente de seu conselho de classe, guiem-se por ela. Adentrem-se nas histórias dos territórios que possam em algum momento profissional contestar direitos postos. Ao prepararem suas peças, sejam rigorosos com as palavras. E ao final, respeitem a memória das populações indígena e negra do Brasil.


[1] Carter Godwin Woodson. A (des)educação do negro. São Paulo: Edipro, 2021. p. 117.

[2] Conheça um pouco mais da história da Capela dos Aflitos, disponível no link: https://guianegro.com.br/arquidiocese-sao-paulo-restauro-capela-dos-aflitos/. Acesso em 5 de mai. 2023.

[3] A história de Chaguinhas é narrada no livro do jornalista Roberto Pompeu de Toledo, que conta que foi preso por desobediência militar, pois reivindicava o pagamento de seus soldos em atraso e com isso condenado a morte. As condenações eram realizadas no Largo da Forca. Mas no caso de Chaguinhas a corda se quebrou por três vezes antes de sua morte ocorrer por pauladas diante do clamor da população que assistiam sua execução e aos gritos pediam liberdade, liberdade ao condenado. TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão: uma história de São Paulo das origens a 1900 Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. p. 286.

[4] Há uma abertura do documentário sobre a vida de Chaguinhas interessante de assistir, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NnL49XAGn0o. Acesso em 5 de mai. 2023.

[5] Vale destacar o Instituto Tebas (https://www.instagram.com/institutotebas/), União dos amigos da Capela dos Aflitos – UNAMCA (https://pt-br.facebook.com/salvemosacapeladosaflitos/), entre outros grupos e pessoas que se juntaram nessa empreitada.

[6] Informações no site: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/12/12/arqueologos-encontram-mais-duas-ossadas-do-tempo-da-escravidao-em-terreno-na-liberdade-centro-de-sp.ghtml. Acesso em 5 de mai. 2023.

[7] O processo é público e está disponível sob o registro 1048699-45.2020.8.26.0053 no site do TJSP.

[8] Analisando os autos, não se verificou nenhuma certidão ou pedido de comunicação do ocorrido para entidade de classe.

[9] Vale destacar o livro do professor Gabriel Nascimento Racismo Linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Leitura essencial para entender como palavras e termos que parecem inofensivos se tratam na verdade de racismo linguístico. NASCIMENTO, Gabriel. Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Belo Horizonte: Letramento, 2019.

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