Pioneira, discreta e inspirada pela mãe: a trajetória de Kamala Harris, candidata democrata na eleição dos EUA


Harris, nascida na Califórnia e ex-procuradora-geral do Estado, costuma mencionar o peso, em sua trajetória, da educação de sua mãe, que imigrou da Índia sozinha aos 19 anos. E diz que, de todos os seus títulos, o de ‘Momala’, dado pelos enteados, é o melhor deles. Kamala Harris durante comício na Pensilvânia, em outubro de 2024.
Gene J. Puskar/ AP
E
Kamala Harris conta frequentemente que aprendeu com a mãe, indiana que migrou sozinha para os EUA aos 19 anos, a ser sempre “a primeira mulher” a conquistar algo, e também a lutar para nunca ser a última.
Em pelo menos quatro ocasiões de sua vida ela conseguiu aplicar o conselho: Harris, de 60 anos, já foi a primeira mulher a ser procuradora-geral da Califórnia, a primeira senadora de origem indiana, a primeira vice-presidente mulher dos Estados Unidos e a primeira candidata à presidência mulher, negra e com raízes sul-asiáticas.
Nesta terça-feira (5), ela tentará romper mais um paradigma, o quinto de sua vida e o mais importante de seu país: tornar-se a primeira presidente mulher da história dos Estados Unidos.
✅ Clique aqui para seguir o canal de notícias internacionais do g1 no WhatsApp
Kamala Devi Harris nasceu em 1964 em Oakland, região metropolitana de São Francisco, na Califórnia, onde seus pais se conheceram quando participavam do movimento pelos direitos civis que tinha eclodido alguns anos antes no estado.
Seu nome do meio, a palavra em sânscrito para deusa, foi escolhido por sua mãe. Era uma forma de tentar que a cultura hindu, que adora divindades femininas, influenciasse a vida da menina de pai jamaicano que cresceu na Califórnia e morou em Washington para estudar direito e, mais tarde, ser senadora e vice-presidente.
Em imagem de arquivo, Kamala Harris (à esq.) ainda criança ao lado da irmã mais nova, Maya, e da mãe delas.
Reproduçao/ Kamala Harris
Embora sempre muito inserida na cultura norte-americana — ela já trabalhou em um McDonald’s e não esconde que tem posse de arma de fogo —, Harris sempre conta que suas raízes da Índia, onde ela passava férias com a família na infância, e a luta pelos direitos das mulheres e minorias fizeram parte da sua vida.
Mas as questões de raça, gênero e imigração, que sempre permearam sua vida pública e privada, são bandeiras que Kamala evitou explorar ao longo de sua trajetória profissional. E não foi diferente durante a campanha presidencial deste ano, na qual ela embarcou na metade do caminho ao substituir o presidente Joe Biden na corrida democrata.
‘A senhora dos gatos sem filhos’
Perfil de Kamala Harris, candidata Democrata à Presidência dos Estados Unidos
Madrasta de dois jovens, Colem de 30 anos, e Ella, de 25 anos, ela enfrentou críticas dos republicanos, lideradas pelo candidato a vice de Trump, J.D. Vance, por não ter filhos.
Em uma entrevista, Vance usou uma expressão para se referir a Kamala que acabou adotada por apoiadoras da democrata: ele chamou a vice-presidente de “a senhora dos gatos sem filhos” para se referir a mulheres que não tiveram filhos e “que são infelizes em suas próprias vidas, portanto, não têm participação direta na vida do país”.
Novamente, a democrata optou por não comprar a briga. Nem precisou: seus enteados, a mãe deles e seu marido, o advogado Doug Emhoff — o único com quem já foi casada —, saíram em defesa de Kamala e revelaram o apelido da democrata dentro de casa: “Momala” — uma mistura de “mom” (mãe, em inglês) com Kamala.
A democrata costuma dizer em entrevistas que este é o título mais importante que ela adquiriu na vida. “Eu já tive muitos títulos, e o de vice-presidente será o ótimo, mas ‘Momala’ sempre será o mais significativo”, disse, durante um ato de campanha em 2020, antes de vencer na chapa com Biden.
A mãe de seus enteados, a produtora Kerstin Emhoff, que participa da campanha da democrata, inclusive afirmou que Kamala é uma “co-mãe” de seus filhos desde que a vice-presidente se casou com Doug Emhoff, em 2014.
A democrata Kamala Harris com os enteados e o marido, Doug Emhoff, em imagem de arquivo.
Divulgação/ Kamala Harris
Já o “silêncio” de Kamala sobre o assunto foi, em parte, uma estratégia do Partido Democrata — a bandeira de gênero foi fortemente levantada em 2016 pela campanha de Hillary Clinton, a então candidata da sigla que perdeu para Donald Trump. E houve uma avaliação dos democratas de que isso pode ter prejudicado o desempenho de Clinton.
Mas outra parte pode ser atribuída ao estilo discreto de Kamala. “Minha mãe sempre me ensinou que nossos atos, e não nossos discursos, devem falar por nós”, já disse a vice-presidente.
Por isso, ao longo da gestão Biden, ela acabou ficando à sombra do presidente mesmo sendo uma das principais novidades do governo. Também interferiu pouco na campanha do presidente, exceto ao ser convocada por ele.
Biden, já sabendo de possíveis custos eleitorais que a política migratória poderia trazer, designou o assunto à sua vice. Ela abraçou a causa e inclusive acabou chamada de “czar da fronteira” por apoiadores de Trump, que a acusaram de apoiar mais entradas ilegais no país.
Foi só quando o atual presidente desistiu de concorrer e, na sequência, indicou sua vice para a candidatura, que Kamala assumiu o papel de sucessora do posto e começou a reivindicar protagonismo.
O eleitorado respondeu à autoconfiança da discreta vice-presidente, gerando um clima de euforia na reta inicial de sua campanha.
Ainda assim, Kamala preferiu focar em sua trajetória profissional. Disse em entrevistas que foi “uma das promotoras mais progressistas” da Califórnia, em referência aos 12 anos em que serviu no Ministério Púbico de São Francisco e para rebater falsos rumores de que teria mandado à prisão homens negros em posse de maconha de forma desproporcional nesse período — ela chegou a prometer, inclusive, descriminalizar a droga.
Após um bom desempenho no Ministério Público, Kamala alçou o posto jurídico máximo do estado onde nasceu e cresceu: indicada pelo então presidente Barack Obama, virou procuradora-geral da Califórnia, com foco em casos de abuso sexual infantil — seu último emprego antes de migrar para a política.
Em imagem de arquivo, Kamala Harris faz juramento para o cargo de produradora-geral da Califórnia ao lado da irmã, Maya.
Divulgação/ Kamala Harris
Foi eleita em sua primeira candidatura, para o Senado em 2016, ano em que seu rival, Donald Trump, chegou à Presidência. E, assim, Kamala, que cresceu na Califórnia, voltou a morar em Washington, onde cursou a faculdade de direito na Universidade Howard.
No Senado, ela conseguiu uma vaga no cobiçado Comitê Judiciário, o que lhe deu destaque dentro e fora da Casa. Quatro anos depois, em 2020, topou um convite para se tornar pré-candidata à Presidência. Mas desistiu da corrida antes das primárias de Iowa — a primeira — diante de uma dissidência de parte de sua equipe e de não conseguir arrecadar dinheiro suficiente.
No fim daquele ano, no entanto, Biden convidou a democrata para ser sua vice. Ao aceitar o convite, ela deixou definitivamente a Califórnia, onde havia vivido a maior parte de sua vida.
Foi lá onde sua mãe, Shyamala Gopalan, chegou na década de 1950, após receber o aval dos pais, ativistas políticos na Índia, para fazer um mestrado — na Índia, ela havia cursado a faculdade de ciências domésticas, que preparava mulheres para a vida em família.
Só que, em vez de retornar a seu país de origem para um casamento arranjado, seguiu em um doutorado nos EUA e tornou-se referência em pesquisas sobre o câncer de mama. Em paralelo, Gopalan se envolveu com o movimento pelos direitos civis que fervilhava na Califórnia.
Por isso, acabou muito inserida em círculo de estudantes negros, onde conheceu o pai de Kamala, o jamaicano Donald Harris. Os dois tiveram duas filhas: Kamala e sua irmã mais nova, Maya. Depois, se separaram, e atualmente a democrata menciona pouco o pai, com quem tem uma relação distante.
Donald Harris, que já morou no Brasil na década de 1990 para lecionar na Universidade de Brasília, vive há poucos quilômetros da filha, segundo uma reportagem do jornal “The New York Times”.
Já sua mãe, que morreu em 2009 de câncer do colo do útero, é frequentemente mencionada em discursos e entrevistas da democrata como sua grande fonte de inspiração, principalmente na luta por minorias.
“Eu lutei pelo povo por toda a minha vida. Como uma jovem procuradora em Oakland, eu apoiei mulheres e crianças contra predadores que abusaram delas. Como promotora em São Francisco, ajudei a fazer a Califórnia se tornar o primeiro estado a banir a defesa do ‘pânico gay/trans’, usado para justificar atos horríveis contra a comunidade LGBTQIA+. Como procuradora-geral, enfrentei os grandes bancos em prol de famílias de classe média que enfrentavam ordens de execução hipotecária. Como senadora e vice-presidente, lutei em nome de todos os americanos — e continuarei a fazê-lo como presidente”, disse a democrata dias antes da eleição.
Adicionar aos favoritos o Link permanente.