Reforma tributária: o que podemos aprender com os antecedentes históricos

O país está às vésperas de realizar a mais importante reforma tributária, aguardada desde a Constituição de 1988. É sempre prudente, portanto, estudarmos as experiências para entender como chegamos ao atual modelo e quais lições é possível extrair disso.[1] Logo, vamos analisar criticamente, neste texto, a reforma que criou o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN).

O Sistema Tributário Nacional, legado da Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1946), sofreu uma profunda reforma por meio da Emenda Constitucional 18/1965, depois de décadas de debates. O confuso, complexo e caótico sistema tributário nacional seria substituído por um novo modelo, adequado ao momento econômico e receptor das melhores contribuições de sua época.

Os incontestes redatores do Código Tributário Nacional (CTN), o professor Rubens Gomes de Souza[2] e o advogado carioca Ulhoa Cânto, estiveram entre os nomes da importante comissão que redigiu o projeto de Emenda Constitucional. Os debates se estenderam de janeiro de 1965 até a aprovação da emenda em 1º de dezembro de 1965. Em julho a comissão publicou o primeiro esboço do projeto, debatido exaustivamente por associações de classe, funcionários públicos e funcionários públicos dos três níveis de governo.

O objetivo principal do projeto era, declaradamente, seguir a diretriz básica da Comissão pela reforma, para “a substituição dos três campos tributários, federal, estadual e municipal, supostamente independentes, por um sistema tributário nacional integrado”[3]. Não se enxergava nenhuma ofensa à autonomia financeira dos entes federados, reconhecidos e saudados como um grande exemplo de um federalismo fiscal próprio, singular e distinto das tradições europeias e das Américas. Há muito o país havia se distanciado do modelo de Estado Federal e consagrado um modelo de federação em três níveis.

Uma das principais características desse novo modelo, pasmem, era a repartição de competências com base nas considerações da realidade econômica. Não se tratava de uma interpretação econômica dos fatos jurídicos, matriz interpretativa afastada indubitavelmente pela nossa tradição doutrinária, legislativa e jurisprudencial. Era a formulação de uma legislação tributária com respeito aos fatos econômicos.

A importância da posição de Rubens Gomes de Souza[4] exige a sua citação expressa: “[…] como primeiro passo nesse sentido, o método de atribuir impostos específicos a determinados governos à base de definições jurídicas foi abandonado. Em seu lugar, foram definidas três categorias econômicas – comércio exterior, patrimônio e renda, produção e circulação –, nas quais todos os impostos pudessem ser classificados”. Uma quarta categoria foi acrescentada para os impostos especiais, para os casos em que as incidências não se adequassem a nenhum dos três elementos.

A atribuição de competência aos conceitos seguiu uma lógica também muito própria, ao estabelecer o seguinte: “O critério de seleção do governo [sic] mais indicado em cada caso baseou-se primordialmente em considerações econômicas, e secundariamente em critérios jurídicos, políticos ou de conveniência administrativa”.[5] Desse modo, privilegiar-se-ia a atribuição de competência ao governo “mais apto para tributá-las”. O governo mais próximo, mais eficiente em acompanhar o fato econômico teria a competência para tanto e não haveria uma divisão em função de necessidades, sem considerar a capacidade para tributar.

O processo obedeceria a três fases. Primeiramente, a alteração constitucional, depois a alteração em leis complementares e, por fim, as legislações de cada um dos entes federados.

O texto mantinha as limitações ao poder de tributar, regulava os impostos sobre comércio exterior, renda e patrimônio. Interessa-nos, contudo, observar as alterações nos impostos sobre o consumo. Os impostos indiretos tinham uma função importantíssima nas receitas estaduais e municipais. O imposto sobre vendas representava 70% das receitas estaduais, e o imposto de indústrias e profissões era a base das receitas municipais. Este era cobrado sobre a receita bruta das vendas e dos serviços, em um modelo similar à Imposta Generale sul’Entrata italiana (IGE)[6]. As críticas a esse modelo se referem à permissão de uma sobreposição de bases e à cumulatividade tributária.

Defeito evidente desse sistema era a sua cobrança cumulativa ou “em cascata”. Cobrava-se o imposto sobre as vendas a comprador independente, o que gerava o subterfúgio de operações internas para escapar à tributação. A incidência pelo modelo francês de tributação sobre o valor agregado (Taxe sur la Valeur Ajoutée – TVA) incidia sobre a circulação, mesmo que entre estabelecimentos do mesmo titular, desde que existisse a agregação de valor.

Rubens Gomes de Souza analisa a incidência do novo Imposto sobre Circulação de Mercadorias nas operações interestaduais. Acentuava-se à época o notório problema da distinção entre Estados “produtores” e Estados “consumidores“. Os conflitos federativos surgiam da cobrança cumulativa de impostos sobre a transferência para um Estado por filial ou representando em outro Estado. Tanto o Estado de origem quanto o Estado de destino da mercadoria pretendiam tributar essa operação.

O Decreto-Lei 915, de 1º de dezembro de 1938, definiu como competente para tributar essa operação o Estado produtor,[7] disposição declarada constitucional pelo STF. Os resultados, atestados por Rubens Gomes de Souza, foram terríveis. Os Estados onde efetivamente ocorria a venda mercantil se sentiam fraudados e realizavam subterfúgios para permitir a tributação, gerando aumento de litigiosidade. Esperava-se que o ICM eliminasse esse conflito, por equilibrar a cobrança do imposto entre o Estado produtor e o consumidor. O primeiro tributaria o valor integral da transferência, e o segundo, a diferença devida pelo valor agregado na operação.

O Imposto de Consumo daria origem ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e se diferenciaria do ICM pelo seu caráter seletivo.

Outro problema a ser resolvido foi a alteração da tributação municipal. Dever-se-ia substituir o Imposto Municipal de Indústrias e Profissões por um novo em que se eliminavam os constantes conflitos de competência entre Municípios do mesmo ou de diferentes Estados. A solução encontrada foi permitir um Imposto Municipal de Circulação, com o caráter de um adicional do ICM, mas limitado à porcentagem de 30% da alíquota estadual. Havia o cuidado de não vincular o adicional municipal à cobrança do ICM pelo Estado, visto que eventuais isenções estaduais não poderiam impactar a receita municipal decorrente do adicional. Criar-se-ia igualmente o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, municipal, não sujeito a imposto federal ou estadual.

Criaram-se dois Fundos de Participação, em substituição a todos os anteriores, um dos Estados e do Distrito Federal e outro dos Municípios. Caberia ao Tribunal de Contas da União a administração e a distribuição desses recursos, na forma regulada em lei complementar. Essa são em linhas gerais o espírito da Reforma da EC 18/65.

Vejamos a partir desse registro histórico, em primeira pessoa, do relator da proposta que deu origem à Emenda Constitucional 18/1965 alguns ensinamentos que podem ser extraídos do esforço daquele que foi o patrono intelectual da Reforma.

Detinha profunda preocupação com a modernização da nossa Federação singular em três níveis, por meio da integração das esferas tributárias. A busca de soluções que evitassem a terrível guerra fiscal entre Estados o levou a sugerir a mudança do imposto sobre vendas para um imposto sobre a circulação de mercadorias, cobrado sobre o valor agregado. De igual modo, pretendia resolver o conflito federativo entre municípios. Apontava desde lá a possibilidade de soluções nacionais que não feriam a autonomia federativa, atribuindo a tributação ao ente mais adaptado ao fato econômico.

Perguntemos, nesse sentido: qual é o ente mais adaptado para tributar os serviços bancários, financeiros, de comunicação, internet, bens digitais, locação de bens móveis, prestado por empresas nacionais e multinacionais, digitais ou físicas, de abrangência nacional e com base tecnológica de ponta?

Adotou a Comissão o caminho de reformar, de uma vez e de modo total, o sistema, analisando a Emenda Constitucional e a Lei Complementar, ou seguiu um caminho pragmático e lógico de alterações legislativas em fases coordenadas por ideias específicas? Imagine-se a situação de uma Emenda com hipotéticos 100 dispositivos, perfeitamente ordenados em uma Lei Complementar com 100 dispositivos, perfeitamente conectados. Agora pensemos na hipotética situação de alteração de somente um dispositivo dessa Emenda; teríamos, no mínimo, de verificar uma ou mais alterações na Lei Complementar, analisada simultaneamente.

As possibilidades de combinações simultâneas e sucessivas tornariam a discussão parlamentar um debate caótico e sem fim. Mas todos queremos uma reforma que aconteça e não apenas eternamente discutida. A sabedoria pragmática e realista de um dos fundadores do nosso sistema é novamente digna de nota. A reforma deve iniciar pelo debate da emenda e, ato subsequente, pela discussão da lei complementar.

A atribuição de um ente autárquico autônomo para a administração e a distribuição dos recursos das participações dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a ser regulado em lei complementar, demonstra a possibilidade de um órgão independente e paritário, capaz de unir, de modo integrado e coordenado, os Estados e os Municípios.

O Conselho Federativo será o primeiro órgão real a permitir a refundação de um federalismo cooperativo no país. A ousadia daquela época deve nos inspirar a criar uma instituição faltante em nosso federalismo, muito superior ao Confaz (somente de Secretários da Fazenda); ao Conselho do Simples Nacional (de natureza federal); ao Senado (de natureza parlamentar); ao Conselho Gestor da Lei de Responsabilidade Fiscal (nunca criado) ou aos convênios e consórcios públicos. Aprendemos muito com o funcionamento dessas instâncias, com todos os acertos e erros, mas a Federação precisa de um verdadeiro Conselho Federativo. O país precisa de um IVA, e o IVA nacional precisa de um Conselho Federativo paritário, equilibrado e integrador.

[1] SOUZA, Rubens Gomes de. A reforma tributária no Brasil. Revista de Direito Administrativo, v. 87, jan.-mar. 1967.

[2] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Fundamentos históricos e conceituais do Código Tributário Nacional: Rubens Gomes de Souza, suas cartas, suas ideias, seu projeto. RDIET, Brasília, v. 15, n. 1, p. 43-94, jan.-jun. 2020.

[3] SOUZA, 1967, p.  03.

[4] SOUZA, 1967, p.  03.

[5] SOUZA, 1967, p.  04.

[6] R.D.L. 2/1940 (convertito in L. 762/1940).

[7]  “Art. 1º O imposto sobre vendas e consignações a que se refere a letra d, do n. 1, do art. 23 da Constituição Federal, é devido no lugar em que se efetuar a operação. Parágrafo único. Para os efeitos fiscais considera-se lugar em que se efetua a operação (venda ou consignação) ou em que tem sede o estabelecimento do vendedor ou consignante, seja matriz, filial, sucursal, agência ou representante, com depósito a seu cargo das mercadorias vendidas ou consignadas, salvo quando se tratar de venda efetuada diretamente pelo próprio fabricante ou produtor, caso em que o lugar da operação será aquele onde foi fabricada ou produzida a mercadoria”.

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