O arcabouço legal do programa Minha Casa, Minha Vida

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Elaborar políticas públicas é tarefa interdisciplinar: o diagnóstico de problemas e sua delimitação exigem um olhar multifacetado dos agentes públicos. Os instrumentos são diversos e caberá ao gestor compreender quais atenderão às finalidades estabelecidas para determinada política. Tarefa difícil, que requer uma bagagem de compreensões técnicas e políticas amplas para que, para além do diagnóstico e delimitação do problema, possam ser encontradas as estruturas jurídicas adequadas que garantam a entrega dos resultados pretendidos com o programa.  

Diante de diversas possibilidades, um mecanismo bastante utilizado pelos formuladores de políticas públicas é identificar qual conteúdo normativo deverá ser estabelecido por meio de lei e qual poderá estar em atos normativos secundários. Compreender a possibilidade de tais escolhas pode parecer uma discussão secundária, mas revela uma decisão estratégica a respeito do grau de rigidez da política[1], possibilitando duas consequências possíveis: 1) o caráter de permanência dos programas públicos diante de possível alternância de governo; 2) a correção de processos e procedimentos que eventualmente precisem ser modificados para o atingimento dos propósitos estabelecidos pelo programa.  

Um exemplo ilustrativo das escolhas de desenho de política pública é o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), do governo federal. A Lei 11.997/2009, que regia a antiga versão do programa, se ocupava basicamente em definir regras para os fundos financiadores[2]. O desenho operacional da política estava disciplinado, a rigor, em normas inferiores a decreto: o Manual de Seleção de Beneficiários (Portaria MCID 163/2019) e a Portaria MCID 114/2018, que estrutura o Minha Casa, Minha Vida. 

O Manual de Seleção cuida do passo a passo do ingresso dos cidadãos no programa, normas de sorteio e traz espaço para a modelagem dos critérios de prioridade do programa pelos entes locais, como, por exemplo, a priorização de famílias atendidas pelo aluguel social do ente local ou residentes há determinado tempo no município. 

A Portaria MCID 114/2018 pode ser entendida como o coração do antigo Minha Casa, Minha Vida, pois adquire o status de espinha dorsal da política ao nomear os atores do programa, definir suas competências, responsabilidades, metas e marcos de avaliação. A portaria dispõe, por exemplo, sobre o Termo de Adesão dos entes locais ao Minha Casa, Minha Vida, sua participação com aportes financeiros, bens ou serviços para a realização das obras, assim como disciplina a atuação da Caixa Econômica enquanto gestora operacional. 

O novo Minha Casa, Minha Vida, estabelecido pela MP 1162/2023, traz algumas alterações no desenho da política que fazem refletir a respeito das consequências que podem trazer. Nessa versão, alguns temas foram alçados ao nível da lei quando comparados com o antigo Minha Casa, Minha Vida – por exemplo, a definição das faixas de renda atendidas pelo programa, assim como os grupos prioritários para atendimento. É possível levantar algumas hipóteses para essa alteração de desenho, como a proteção contra eventual desmonte da política por meio da revogação das normas infralegais por outra gestão[3]. 

Como contraponto a esse movimento, é possível constatar o enrijecimento da política pública nos aspectos mencionados. A normatização pelos órgãos do Executivo possibilita maior maleabilidade do programa e possibilidade de alteração das suas diretrizes, conforme os resultados das avaliações de impacto, sem o custo político e a imprevisibilidade de submeter um projeto de lei ao Legislativo. Isso torna mais fácil uma correção de rota, caso seja necessária.

Um exemplo prático desta questão é a atualização dos valores das faixas de renda. A lei não atribui explicitamente ao Executivo a possibilidade de corrigir os valores pela inflação via decreto ou norma inferior, o que joga a questão em uma zona cinzenta de legalidade e de insegurança jurídica, podendo ocasionar a defasagem dos valores no longo prazo.  

O desenho de uma política pública deve considerar os aspectos formais e materiais necessários para uma correta tradução jurídica do diagnóstico e do plano de enfrentamento de um problema público, assim como deve estar atento à conveniência da utilização de uma ou outra ferramenta jurídica. Políticas com desenho prioritariamente infralegal são mais flexíveis e adaptáveis, pois, em razão da normatividade exercida pela Administração Pública, é possível corrigir erros e criar estruturas com agilidade. Por outro lado, estão mais expostas a mudanças bruscas e desmonte por parte de outras gestões, o que pode não ser desejável pelos seus formuladores. 

Por sua vez, programas que priorizam a fixação em lei têm uma proteção reforçada contra tempestades políticas futuras, mas acabam por engessar temas que necessitem de discussão frequente. 

Para cada escolha, uma renúncia. É fundamental que o formulador da política domine a relação das normas infralegais com a lei e vice-versa para que consiga manejar os desenhos possíveis e identificar vulnerabilidades que afetem a segurança jurídica do programa. Em um cenário que possibilita certa liberdade criativa nas escolhas, a discussão sai do campo do “certo” e do “errado”, velho conhecido dos administradores públicos, e se desloca para as diversas possibilidades que formam molduras mais ou menos adequadas para a natureza do conteúdo que dá forma à política que se quer implementar.


[1] Outra discussão que envolve a estatura das normas é o cálculo político a respeito da viabilidade de aprovação do seu conteúdo pelo Poder Legislativo. Pode ser mais vantajoso iniciar a política em formato de Medida Provisória, com produção imediata de efeitos, ou por lei, com processo de discussão mais amplo e demorado. Outra possibilidade é se utilizar de cláusulas legais abertas para delegar poder normativo ao Executivo via decreto ou utilizar do decreto para delegar aos órgãos da administração a possibilidade de regulamentar matérias específicas. Em ambos os casos é necessária atenção aos limites permitidos para esta delegação. 

[2] É possível chegar a esta conclusão verificando o grau de minúcia que a lei tece a respeitos dos fundos de financiamento, muito superior a outros aspectos mais operacionais do programa, que apresentam apenas diretrizes gerais, sendo este conteúdo quase que inteiramente previsto em normas inferiores a decreto. 

[3] Existe um vasto campo de pesquisa acerca do desmonte de políticas públicas, que explora causas e ferramentas utilizadas para extinguir programas, bem como seus motivos. Para aprofundamento cf. MELLO, Janine. Caminhos do desmonte de políticas no Brasil: condicionantes e hipóteses. Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/index.php?option=com_content&view=article&id=39272. Acesso em: 17 abr. 2023. 

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